quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Olhar é um ato de escolha

"A minha vida se resume,
desconhecida e transitória,
em contornar teu pensamento".
Cecilia Meireles


Falando de um tempo: as Vanguardas

A quebra de valores artísticos tradicionais e a busca de técnicas para uma nova realidade do século XX, foram as propostas das vanguardas européias.
Um sentimento de liberdade para criar, o desejo de romper com o passado e certo irracionalismo, além da subjetividade, aproximaram tendências surgidas na Europa e que atingiram o mundo ocidental.
Não só a arte se transforma, há um cenário repleto de invenções, desenvolvimento científico e tecnológico, guerra, lutas sociais e revolução comunista que prepararam a grande renovação modernista.
Durante um momento tão conturbado, mas ao mesmo tempo tão inovador, surge o Expressionismo, uma das vanguardas, em que o essencial era registrar a expressão do mundo, a imagem distorcida, pouco se importando com o belo ou o feio e sim em tornar-se uma forma de contestação.
Viver a dor remete o sentido trágico da vida deformando-a significativamente. Não há obstáculos no campo das convenções e a repressão social é repudiada como nunca.

Uma obra de arte conta uma história, remonta um tempo passado...
Um dos pintores de maior destaque no Expressionismo foi o norueguês Edvard Munch e sua tela “O grito” (1893). Observar com bastante cuidado essa bela obra, nos faz perceber que homem e natureza compartilham o mesmo medo, a mesma angústia.
Observa-se que, em maior ou menor escala, as camadas de ar se entrelaçam e se movimentam em ziguezagues e se expandem pelo universo, fundamentando os conceitos experimentais abordados pela acústica.
São linhas onduladas que se ressentem ao ouvir o som de um grito e que reagem imediatamente de forma impactante, transformando ceu e terra numa grande e sonora cena de horror. As linhas retas, a princípio tão impassíveis ao grito, conduzem nosso olhar para a figura principal do quadro.
No quadro, a temática destinada a expressar o ato de vibração do ar, em conseqüência do grito, é passível de concretização através das ondas que se propagam no espaço, e que, são facilmente vinculadas à acústica, uma vez que conseguimos “ver” o grito lá transcrito, absoluto e real.
As ondas flutuam de maneira caótica numa espécie de ciclos de duração identificadores da expansão do espaço preocupado em dar vazão ao grito.
Cores por vezes suaves como o azul, estão num ondular entre mar e terra, se misturam numa dança de movimentos ritmados. O ceu alaranjado também se perturba com o grito, porém, com menor intensidade, uma vez que mais distante da fonte emissora. O ceu entre o alaranjado e o amarelo se apresenta também em movimentos contínuos e que causam medo e incertezas, à espera de um amanhecer que liberte definitivamente o homem que grita.
Na Literatura, assim como na tela, nota-se um desejo de romper com um passado de formalidades e padrões. Linguagem fragmentada, despreocupação formal, sem rimas, sem estrofes, sem sujeito, sem verbos...
[...] Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário
O cunho vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas [...]
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
“Poética” Manuel Bandeira
O poeta critica a falta de espontaneidade dos poetas do passado e sua atitude burocrática e formalista perante a poesia. Prefere o lirismo dos loucos, bêbados e palhaços porque mais autênticos, não estão presos a valores sociais. O lirismo deve ser, antes de tudo, profundo e verdadeiro.
Assim nos conduziu o pintor, quando nosso olhar dirige-se ao protagonista, querendo chamar nossa atenção para si e para o novo, o contestador, deixando ao fundo, o tradicional, o formal, na figura do casal vestido de preto, cor indicadora de sobriedade, tradição e rigor.
Ao gritar, a figura tapa os ouvidos e dá as costas ao sol, à natureza, às pessoas, pois tudo parece estar contra si, transmitindo sua dramática solidão, porém podemos dizer que, natureza e pessoas podem ouvi-lo, pois ao gritar há vibração de cordas vocais, o som é agudo e, portanto, existe emissão de grande frequência.
Mesmo assim, o homem apresenta-se como um ser amargurado, que busca no grito a expansão de suas angústias e medos interiores.
Tanto a Literatura quanto a Física tentam deixar claro aos leitores dessas páginas, que sempre há várias “leituras” que podem ser feitas de uma obra de arte. Essas leituras podem ser usadas intencionalmente para atingir o resultado que se tem em mente.
Nosso objetivo é proporcionar reflexão e mostrar algumas marcas de possibilidades no plano da significação apoiadas na coerência e na emoção, por meio de um diálogo inédito entre a Física e a Literatura.

Um comentário:

  1. Impressionante novamente, a leitura é agradável quando se nota a facilidade na escrita e na brilhante interpretação.

    Por mais que eu seja um leigo em interpretar obras de arte, essa interpretação foi digna de reverência.

    Queria dizer uma coisa para vocês, esse texto é merecedor de se dizer que quem elaborou é gênio ou louco...bom não preciso nem dizer em que categoria vocês se enquadram.

    Parabéns, e bjos.

    Serginho.

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